Reproduzido de MÔNICA BERGAMO
COLUNISTA DA FOLHA
O
ex-ministro José Dirceu foi condenado sem provas. A teoria do domínio do fato
foi adotada de forma inédita pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para
condená-lo.
Sua
adoção traz uma insegurança jurídica "monumental": a partir de agora,
mesmo um inocente pode ser condenado com base apenas em presunções e indícios.
Quem diz
isso não é um petista fiel ao principal réu do mensalão. E sim o jurista Ives
Gandra Martins, 78, que se situa no polo oposto do espectro político e divergiu
"sempre e muito" de Dirceu.
Com 56
anos de advocacia e dezenas de livros publicados, inclusive em parceria com
alguns ministros do STF, Gandra, professor emérito da Universidade Mackenzie,
da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra,
diz que o julgamento do escândalo do mensalão tem dois lados.
Um deles
é positivo: abre a expectativa de "um novo país" em que políticos
corruptos seriam punidos.
O outro é
ruim e perigoso pois a corte teria abandonado o princípio fundamental de que a
dúvida deve sempre favorecer o réu.
*
Folha - O
senhor já falou que o julgamento teve um lado bom e um lado ruim. Vamos começar
pelo primeiro.
Ives Gandra Martins - O povo tem um desconforto enorme. Acha que todos
os políticos são corruptos e que a impunidade reina em todas as esferas de
governo. O mensalão como que abriu uma janela em um ambiente fechado para
entrar o ar novo, em um novo país em que haveria a punição dos que praticam
crimes. Esse é o lado indiscutivelmente positivo. Do ponto de vista jurídico,
eu não aceito a teoria do domínio do fato.
Por quê?
Com ela, eu passo a trabalhar com indícios e presunções. Eu não busco a verdade
material. Você tem pessoas que trabalham com você. Uma delas comete um crime e
o atribui a você. E você não sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o
depoimento dela -e basta um só depoimento. Como você é a chefe dela, pela
teoria do domínio do fato, está condenada, você deveria saber. Todos os
executivos brasileiros correm agora esse risco. É uma insegurança jurídica
monumental. Como um velho advogado, com 56 anos de advocacia, isso me preocupa.
A teoria que sempre prevaleceu no Supremo foi a do "in dubio pro reo"
[a dúvida favorece o réu].
Houve uma
mudança nesse julgamento?
O domínio do fato é novidade absoluta no Supremo. Nunca houve essa teoria. Foi
inventada, tiraram de um autor alemão, mas também na Alemanha ela não é
aplicada. E foi com base nela que condenaram José Dirceu como chefe de
quadrilha [do mensalão]. Aliás, pela teoria do domínio do fato, o maior
beneficiário era o presidente Lula, o que vale dizer que se trouxe a teoria
pela metade.
O domínio
do fato e o "in dubio pro reo" são excludentes?
Não há possibilidade de convivência. Se eu tiver a prova material do crime, eu
não preciso da teoria do domínio do fato [para condenar].
E no caso
do mensalão?
Eu li todo o processo sobre o José Dirceu, ele me mandou. Nós nos conhecemos
desde os tempos em que debatíamos no programa do Ferreira Netto na TV [na
década de 1980]. Eu me dou bem com o Zé, apesar de termos divergido sempre e
muito. Não há provas contra ele. Nos embargos infringentes, o Dirceu
dificilmente vai ser condenado pelo crime de quadrilha.
O
"in dubio pro reo" não serviu historicamente para justificar a
impunidade?
Facilita a impunidade se você não conseguir provar, indiscutivelmente. O
Ministério Público e a polícia têm que ter solidez na acusação. É mais difícil.
Mas eles têm instrumentos para isso. Agora, num regime democrático, evita
muitas injustiças diante do poder. A Constituição assegura a ampla defesa
-ampla é adjetivo de uma densidade impressionante. Todos pensam que o processo
penal é a defesa da sociedade. Não. Ele objetiva fundamentalmente a defesa do
acusado.
E a
sociedade?
A sociedade já está se defendendo tendo todo o seu aparelho para condenar. O
que nós temos que ter no processo democrático é o direito do acusado de se
defender. Ou a sociedade faria justiça pelas próprias mãos.
Discutiu-se
muito nos últimos dias sobre o clamor popular e a pressão da mídia sobre o STF.
O que pensa disso?
O ministro Marco Aurélio [Mello] deu a entender, no voto dele [contra os
embargos infringentes], que houve essa pressão. Mas o próprio Marco Aurélio
nunca deu atenção à mídia. O [ministro] Gilmar Mendes nunca deu atenção à
mídia, sempre votou como quis.
Eles
estão preocupados, na verdade, com a reação da sociedade. Nesse caso se discute
pela primeira vez no Brasil, em profundidade, se os políticos desonestos devem
ou não ser punidos. O fato de ter juntado 40 réus e se transformado num caso
político tornou o julgamento paradigmático: vamos ou não entrar em uma nova
era? E o Supremo sentiu o peso da decisão. Tudo isso influenciou para a adoção
da teoria do domínio do fato.
Algum
ministro pode ter votado pressionado?
Normalmente, eles não deveriam. Eu não saberia dizer. Teria que perguntar a
cada um. É possível. Eu diria que indiscutivelmente, graças à televisão, o
Supremo foi colocado numa posição de muitas vezes representar tudo o que a
sociedade quer ou o que ela não quer. Eles estão na verdade é na berlinda. A
televisão põe o Supremo na berlinda. Mas eu creio que cada um deles decidiu de
acordo com as suas convicções pessoais, em que pode ter entrado inclusive
convicções também de natureza política.
Foi um
julgamento político?
Pode ter alguma conotação política. Aliás o Marco Aurélio deu bem essa
conotação. E o Gilmar também. Disse que esse é um caso que abala a estrutura da
política. Os tribunais do mundo inteiro são cortes políticas também, no sentido
de manter a estabilidade das instituições. A função da Suprema Corte é menos
fazer justiça e mais dar essa estabilidade. Todos os ministros têm suas
posições, políticas inclusive.
Isso
conta na hora em que eles vão julgar?
Conta. Como nos EUA conta. Mas, na prática, os ministros estão sempre
acobertados pelo direito. São todos grandes juristas.
Como o
senhor vê a atuação do ministro Ricardo Lewandowski, relator do caso?
Ele ficou exatamente no direito e foi sacrificado por isso na população. Mas
foi mantendo a postura, com tranquilidade e integridade. Na comunidade
jurídica, continua bem visto, como um homem com a coragem de ter enfrentado
tudo sozinho.
E Joaquim
Barbosa?
É extremamente culto. No tribunal, é duro e às vezes indelicado com os colegas.
Até o governo Lula, os ministros tinham debates duros, mas extremamente
respeitosos. Agora, não. Mudou um pouco o estilo. Houve uma mudança de perfil.
Em que
sentido?
Sempre houve, em outros governos, um intervalo de três a quatro anos entre a
nomeação dos ministros. Os novos se adaptavam à tradição do Supremo. Na era
Lula, nove se aposentaram e foram substituídos. A mudança foi rápida. O Supremo
tinha uma tradição que era seguida. Agora, são 11 unidades decidindo
individualmente.
E que
tradição foi quebrada?
A tradição, por exemplo, de nunca invadir as competências [de outro poder] não
existe mais. O STF virou um legislador ativo. Pelo artigo 49, inciso 11, da
Constituição, Congresso pode anular decisões do Supremo. E, se houver um
conflito entre os poderes, o Congresso pode chamar as Forças Armadas. É um
risco que tem que ser evitado. Pela tradição, num julgamento como o do
mensalão, eles julgariam em função do "in dubio pro reo". Pode ser
que reflua e que o Supremo volte a ser como era antigamente. É possível que,
para outros [julgamentos], voltem a adotar a teoria do "in dubio pro
reo".
Por que o
senhor acha isso?