Cantoria de sabiá-laranjeira na madrugada divide ouvidos paulistanos
ROBERTO DE OLIVEIRA
DE SÃO PAULO
Diz uma
antiga lenda indígena que, durante as madrugadas, no início da primavera,
quando uma criança ouve o canto de um sabiá-laranjeira, ela é abençoada com
amor, felicidade e paz.
Isso lá
na floresta. Na selva urbana, a história é outra: tem gente se revirando na
cama com a sinfonia que chega a durar duas horas seguidas antes mesmo de
clarear o dia.
"Morei
35 anos no interior paulista e nunca fui acordada por passarinho algum",
conta Adriana Matiuzo, 37, moradora do Brooklin (zona sul). "Agora, em plena São Paulo
barulhenta e caótica, minhas madrugadas têm sido bem diferentes."
Por causa
do insistente gorjeio, "posts" vêm pipocando nas redes sociais,
reivindicando o silêncio dos passarinhos em prol do sono.Por volta
das três da matina começa a sinfonia. O cantante é o sabiá-laranjeira,
ave-símbolo do Brasil e do Estado de São Paulo, que vive no campo e na cidade.
O diretor
de arte Gilberto Leite, 38, postou: "Ele canta três acordes e fica o dia
inteiro martelando isso. É insuportável!". À reportagem, disse ele:
"Vou ser linchado pelos protetores dos pássaros, mas que é insuportável,
isso é".
O engenheiro
Johan Dalgas Frisch pensa diferente. "O sabiá é considerado a ave que
melhor canta", afirma.
Um dos
maiores especialistas do país, respeitado internacionalmente, esse ornitólogo
já gravou 18 discos... de cantos de passarinhos.
Frisch,
83, pioneiro na gravação de vozes de aves da América do Sul, diz que quem
reclama da cantoria é "gente que nasceu num bloco de concreto sem conhecer
o chilreio dos passarinhos".
DE PAI
PARA FILHO
Segundo o
ornitólogo Márcio Repenning, 31, do Laboratório de Ornitologia do Museu de
Ciências e Tecnologia da PUC-RS, a ave canta principalmente para defender um
território em disputa com outros machos da mesma espécie e seduzir a fêmea.
"Machos que cantam com mais vigor a priori terão melhor capacidade de
alimentar os filhotes."
Já Frisch
lembra que o pássaro fica a até cinco metros de distância do ninho para ensinar
a melodia aos filhotes, explicando, assim, a aula madrugada afora.
A escolha
do horário, diz Frisch, é estratégica: durante o dia, se abandonasse o ninho, o
macho deixaria os filhotes na mira de predadores.
O pássaro
é o regente da estação que se avizinha, mesmo numa cidade com pouca área verde
como São Paulo. De Higienópolis ao Morumbi, do Sumaré ao Tremembé, o canto está
por toda a parte.
Morador
de Interlagos (zona sul), o dramaturgo Brunno Almeida Maia, 26, conta que a rua
onde vive nem é tão arborizada assim, mas, "por sorte", a vizinha tem
um jardim, que é voltado para a janela do quarto dele.
"Como
tenho insônia, ouço o trinado até as 5h. Confesso, não me incomoda. É como o
barulhinho da chuva."
Diz que
prefere o canto do sabiá-laranjeira ao ronco de alguém ao seu lado ou "à
barulheira de um vizinho ouvindo 'Applause', da Lady Gaga". "Eu quero
mais é o sabiá."
Nenhum
pássaro da espécie canta igual ao outro, segundo Frisch. O ornitólogo catalogou
o canto de mais de cem sabiás em diferentes pontos da cidade e do país.
Da
literatura ao cancioneiro popular, o pássaro ganhou homenagens de nomes como
Marisa Monte, Tom Jobim e Chico Buarque. Roberta Miranda compôs e Jair
Rodriques celebrizou: "A majestade, o sabiá!". O bicho solta o gogó
pelo menos até o verão. E a primavera ainda nem começou!