A exumação de
João Goulart, decidida pela Comissão da Verdade, pode dirimir de uma vez por
todas, 36 anos depois, as dúvidas sobre a morte do ex-presidente deposto em
1964
por Sérgio Pardellas
Dono de um coração reconhecidamente frágil, o ex-presidente da República
João Goulart era o terror de qualquer cardiologista. Exilado na Argentina e no
Uruguai, depois de deposto pelo golpe militar de 1964, Jango cultivava péssimos
hábitos alimentares e teimava em contrariar todas aquelas recomendações médicas
que prezam pelo bom funcionamento do sistema cardiovascular. Mesmo após se
submeter a um cateterismo em 1969, razão pela qual passou a tomar diariamente
um remédio sublingual – vasodilatadores que variavam entre Isordil e Carangor –,
Goulart comia toda manhã um bife com ovo frito, combinação considerada uma
bomba calórica para quem já ultrapassara os limites aceitáveis de colesterol.
Viciado em cigarros, de preferência os da marca uruguaia Nevada, o
ex-presidente ainda fumava dois maços por dia, rotina altamente contraindicada
para quem convive com problemas cardíacos. Por todos esses motivos, o infarto
fatal sofrido por Jango, aos 57 anos, na madrugada abafada do dia 6 de dezembro
de 1976, em Mercedes, na Argentina, não surpreendeu a belíssima esposa, Maria
Tereza Goulart.
Jango dormia ao lado da mulher na estância La Villa, depois de comer
churrasco de ovelha e beber uma xícara de chá, quando seu coração parou por
volta das 2h45 e não voltou a funcionar mais. “Percebi que ele estava
respirando de maneira esquisita. Gritei Jango, Jango, mas ele já não
respondia”, contou Tereza em recente entrevista. Na ocasião, a família
descartou a necessidade de autópsia. O clínico-geral, buscado em Corrientes –
município situado a 15 km de Mercedes –, examinou o corpo e assinou o atestado
de óbito: “Causa mortis: enfermedad”. Trinta e seis anos depois, porém, em uma
decisão inédita na história do País, a Comissão Nacional da Verdade resolveu
exumar, a pedido da família, o corpo do ex-presidente para elucidar as
circunstâncias de sua morte. A exumação irá ocorrer no Cemitério Jardim da Paz,
localizado no município gaúcho de São Borja, onde Jango está enterrado, e
contará com a participação de peritos argentinos, uruguaios e russos, além de
especialistas da Cruz Vermelha. A iniciativa foi motivada pelas suspeitas
surgidas, desde a década de 1980, de que Jango teria sido envenenado em meio à
Operação Condor – aliança entre órgãos de repressão política da Argentina,
Bolívia, do Chile, Uruguai, Paraguai e Brasil destinada a espionar, prender e
até eliminar inimigos do regime.
Uma farta documentação do antigo SNI e de ministérios do Interior, da
Defesa e das Relações Exteriores do Uruguai intrigou a mulher, o filho, João
Vicente, e o neto, Cristopher Goulart, inicialmente céticos quanto a um
possível assassinato de Jango. Os documentos, anexados à petição com o pedido
da família pela exumação dos restos mortais de João Goulart, mostram que o
ex-presidente passou a ser vigiado permanentemente pelos serviços secretos dos
EUA, do Brasil e Uruguai desde o momento em que deixou o Brasil. A papelada
relata com minúcias a vida particular de Jango. A principal fonte das
informações seria uma agente infiltrada pelos serviços de inteligência
uruguaios dentro da casa do presidente, a empregada doméstica Margarita Suárez.
A partir das detalhadas informações fornecidas por ela, os serviços secretos
que vigiavam Jango sabiam, por exemplo, que remédios ele tomava. “Há elementos
concludentes que Jango possa ter sido vítima da Operação Condor”, diz Rosa
Cardoso, integrante da Comissão da Verdade responsável pelo processo de
exumação.
Além de espionado, Goulart sofria constantes ameaças. Em agosto de 1973,
seu escritório em Buenos Aires foi invadido, mas o imóvel estava vazio. Em
recente depoimento a jornalistas do PDT, Maria Tereza contou que a família
recebia telefonemas anônimos. “Uma vez ouvi de um homem: ‘Sai daí porque daqui
a pouco nós vamos chegar e levar você e seus filhos para o fim do mundo!’”O
cineasta Silvio Tendler, diretor do documentário Jango, de 1984, revela ter
ouvido de funcionários do hotel Liberty, onde o ex-presidente se hospedava em
Buenos Aires, que, quando Goulart ligava o carro, todos se afastavam. “Tinham
medo de bomba”, diz Tendler.
João Goulart temia por sua vida. Em 1973, três anos antes de morrer, em
carta enviada aos filhos que moravam em Londres, o ex-presidente manifestou o
desejo de se mudar para Paris. Mal sabia Jango que, enquanto escrevia a carta,
ele era monitorado pelo agente uruguaio Mario Neira Barreiro. O uruguaio é o
autor da principal denúncia sobre o assassinato do ex-presidente. Ele está
detido desde 2003 na Penitenciária de Charqueadas, no Rio Grande do Sul, por
assalto a banco e tráfico de armas. Sob o codinome Tenente Tamuz, pertenceu ao
grupo Gama, do serviço de inteligência uruguaio. De acordo com Barreiro, ele
espionou Jango de 1973 até o dia de sua morte. Segundo ele, João Goulart teria
sido envenenado com um tipo de cloreto desidratado transformado em comprimido e
colocado em meio aos medicamentos que ele tomava para o coração. O veneno seria
capaz de acelerar o fluxo sanguíneo, provocando hipertensão. Horas depois da
ingestão, leva a um derrame ou a um infarto. O responsável pela adulteração dos
remédios de Jango, segundo Barreiro, teria sido Héctor Rodríguez, um agente
argentino. Há, no entanto, contradições em seus depoimentos prestados desde
2002. A um colegiado da Câmara, afirmou que o frasco havia sido trocado. Em
entrevista à imprensa, ele sustentou que vários comprimidos foram misturados a
diversos frascos. Em conversa com o filho de Jango, João Vicente, disse que uma
cápsula foi incluída. O embaixador e cientista político Moniz Bandeira, que
esteve com Jango no Uruguai e na Argentina, classifica a versão de Barreiro de
“charlatanice”. “Podem até pesquisar. O que não é admissível é apresentar como
verdade uma versão que não pode ser comprovada por documentos”, questiona
Moniz. A riqueza de detalhes sobre o cotidiano de Jango, apresentada no
depoimento do uruguaio Mario Barreiro, porém, impressionou a família. “Sempre
achei que meu marido morreu de forma natural, mas, depois de anos de falatório,
nosso pensamento vai se transformando. Agora, já tenho dúvidas se Jango teria
morrido mesmo de infarto”, disse a viúva quando soube da exumação pela
imprensa.
Em duas semanas, uma força-tarefa – formada pelos integrantes da Comissão da
Verdade, da Polícia Federal, da Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério
Público Federal no Rio Grande do Sul – se reunirá com os peritos para definir a
data exata da colheita dos restos mortais de João Goulart. Já está decidido que
a exumação será administrativa. Ou seja, não haverá necessidade de uma medida
judicial para consumá-la, bastando um pedido administrativo ao cemitério municipal
para ter acesso ao corpo. Os custos serão bancados pela Secretaria de Direitos
Humanos, órgão vinculado à Presidência da República. Em São Borja, a notícia
provocou alvoroço. Na última terça-feira 14, a prefeitura do município gaúcho,
na fronteira com a Argentina, reforçou a segurança no cemitério onde o
ex-presidente está enterrado há 36 anos. Um vigia de uma empresa terceirizada
prioriza a guarda junto ao túmulo.
A expectativa da Comissão da Verdade é que possíveis fibras capilares
encontradas nos restos mortais do ex-presidente possam guardar vestígios de
cafeína, atropina, escopolamina e digoxina. Os elementos podem ser letais,
dependendo da dosagem e do perfil de quem ingeri-los. De acordo com a Polícia
Federal, se for encontrado ao menos um grama de cabelo, a análise toxicológica
poderá ter sucesso. Mesmo assim, ainda pairam dúvidas sobre se a exumação será
conclusiva. Para o bioquímico Lenine Alves de Carvalho, toxicologista e
consultor da Anvisa, não há 100% de certeza de êxito. “Por isso, está havendo
todo o cuidado e estudo para um plano bem-feito”, diz. O fato de o caixão não
ter sido enterrado pode ajudar, segundo Lenine. “Está numa gaveta, no jazigo da
família Goulart. É positivo para ter um laudo conclusivo, porque evita
contaminações, cruzamento de componentes da terra com os restos mortais.” O
médico Odil Pereira, última pessoa a ter contato com o cadáver no velório,
revela otimismo. “Minha esperança é de que as gazes e os algodões que coloquei
nos orifícios contenham algum material para exame”, afirmou. Independentemente
do desenlace, o esforço para elucidar as razões da morte do ex-presidente
deposto num dos períodos mais conturbados da política nacional é altamente
louvável. Se forem dirimidas as dúvidas sobre a morte de Jango, estaremos, sem
dúvida, preenchendo uma lacuna importante de nossa história.
Fotos: Claudio
Gottfried/Agência RBS e Divulgação/Caliban; Adriano Machado, ARQUIVO/AGêNCIA
ESTADO/AE e Arquivo/Agência O Globo